Acórdão do T.R. de Lisboa proferido no âmbito do processo 978/20.8T9LSB.L1-9, datado de 30-01-2025
- Tiago Oliveira Fernandes

- 11 de fev.
- 4 min de leitura
Analisa o conflito de interesses entre o dever de pagar aos trabalhadores e o dever de pagar as contribuições devidas à Segurança Social, no âmbito do crime de abuso de confiança contra a Segurança Social e para efeitos do conflito de deveres p. art. 36.º do Código Penal
*
Em relação ao crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, determina o n.º 1 do art. 105.º do RJIT que “Quem não entregar à administração tributária, total ou parcialmente, prestação tributária de valor superior a (euro) 7500, deduzida nos termos da lei e que estava legalmente obrigado a entregar é punido com pena de prisão até três anos ou multa até 360 dias”.
Já o n.º 4 do art. 105.º do RJIT determina que “Os factos descritos nos números anteriores só são puníveis se: Tiverem decorrido mais de 90 dias sobre o termo do prazo legal de entrega da prestação; A prestação comunicada à administração tributária através da correspondente declaração não for paga, acrescida dos juros respectivos e do valor da coima aplicável, no prazo de 30 dias após notificação para o efeito.”
No caso em apreço, em que estava em causa a alegada prática de um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, foi pela Arguida, além do mais, levantada a questão do conflito de deveres previsto no n.º 1 do art. 36.º do C.P., de acordo com o qual “Não é ilícito o facto de quem, em caso de conflito no cumprimento de deveres jurídicos ou de ordens legítimas da autoridade, satisfizer dever ou ordem de valor igual ou superior ao do dever ou ordem que sacrificar”.
Isto porque, de acordo com a posição assumida pela defesa, sendo a Arguida uma sociedade que explora residências de terceira idade, entende que deveria prevalecer o pagamento do vencimento aos colaboradores por forma a que estes continuassem a desempenhar as suas funções, nomeadamente, cuidar dos idosos que se encontram debilitados em detrimento do pagamento das respetivas cotizações, pois que tal levaria a que os colaboradores deixassem de colaborar com a Recorrente, o que por sua vez levaria a que os idosos que se encontram ao cargo da Recorrente deixassem de ter tratamentos e cuidados.
Ou seja, argumentou a defesa que “o direito à velhice, saúde, vida e dignidade humana que são asseguradas pelo pagamento dos vencimentos é superior ao dever de pagar impostos”, pelo que deveria a Arguida ser absolvida da prática do crime que lhe era imputado.
Ora,
Conforme analisou o Tribunal da Relação, “O cumprimento simultâneo dos dois deveres era incompatível, porquanto devido a “problemas financeiros da sociedade arguida” (conforme resultou provado na alínea L) dos factos provados), os arguidos não procederam ao pagamento das quantias devidas à Segurança Social, tendo pago, apenas, os salários dos seus trabalhadores (conforme resulta dos factos constantes das alíneas F) e G) dos factos provados).
Estamos, porém, perante deveres de diferente valor jurídico, já que um visa a realização do interesse público e outro de natureza privada, e um tem tutela penal enquanto o outro não.
A tutela penal do dever de pagar as contribuições à Segurança Social permite-nos concluir que o legislador atribuiu a este dever um valor muito superior ao dever de pagar os salários aos trabalhadores e de, por via destes, a empresa continuar a laborar, porquanto, constituindo a tutela penal uma última ratio na tutela de bens jurídicos, esta é reservada à preservação dos bens jurídicos tidos pelo legislador como os mais valiosos.
Por outro lado, o dever de pagar as contribuições para a Segurança Social visa a concretização do interesse público do Estado em, arrecadando receitas, afetá-las à realização da satisfação das necessidades coletivas. Ao passo que, o dever de pagar os salários aos trabalhadores visa a realização do interesse privado de satisfação dos créditos laborais e de manter a empresa em funcionamento.”
Como tal, concluiu o Tribunal da Relação que a ilicitude da conduta não estava excluída porquanto o dever de pagar aos trabalhadores é de menor valor jurídico do que o dever de pagar contribuições à Segurança Social, pelo que não se verifica qualquer conflito de deveres nos termos do disposto no n.º 1 do art. 36.º do C.P..
*
“I. Para que a conduta seja justificada ao abrigo do art.º 36º, nº 1 do Código Penal, para além da verificação de pelo menos dois deveres jurídicos diferentes, cujo cumprimento de um inviabiliza o cumprimento do outro, é também necessário que os deveres sejam de igual valor ou, sendo um de valor superior, ser este cumprido em detrimento do dever de menor valor.
II. O dever dos arguidos de pagar aos seus trabalhadores e o seu dever de pagar as contribuições devidas à Segurança Social são de diferente valor jurídico, já que um visa a realização do interesse público e outro visa a realização de interesses de natureza privada, e um tem tutela penal enquanto o outro não.
III. A tutela penal do dever de pagar as contribuições à Segurança Social permite-nos concluir que o legislador atribuiu a este dever um valor muito superior ao dever de pagar os salários aos trabalhadores e de, por via destes, a empresa continuar a laborar, porquanto, constituindo a tutela penal uma última ratio na tutela de bens jurídicos, esta é reservada à preservação dos bens jurídicos tidos pelo legislador como os mais valiosos.
IV. Por outro lado, o dever de pagar as contribuições para a Segurança Social visa a concretização do interesse público do Estado em, arrecadando receitas, afetá-las à realização da satisfação das necessidades coletivas. Ao passo que, o dever de pagar os salários aos trabalhadores visa a realização do interesse privado de satisfação dos créditos laborais e de manter a empresa em funcionamento.
V. Tendo os arguidos, perante conflito de deveres de diferente valor, optado por satisfazer o do menor valor (pagar aos trabalhadores), a ilicitude da sua conduta (omissiva e integradora do crime de abuso de confiança contra a Segurança Social), não está excluída.”








Comentários