Analisa o regime legal aplicável à prova obtida através de ferramentas informáticas, como por ex. Google Maps e Street View, disponível na Internet, e consequências do seu incumprimento.
*
O caso em apreço diz respeito a um litígio que tem por objeto um acidente de viação.
A)
Nos articulados apresentados foi requerido por uma das partes, além do mais, a inspeção judicial, nos termos do disposto no art. 490.º do C.P.C..
De acordo com o disposto no n.º 1 do art. 490.º do C.P.C. “O tribunal, sempre que o julgue conveniente, pode, por sua iniciativa ou a requerimento das partes, e com ressalva da intimidade da vida privada e familiar e da dignidade humana, inspecionar coisas ou pessoas, a fim de se esclarecer sobre qualquer facto que interesse à decisão da causa, podendo deslocar-se ao local da questão ou mandar proceder à reconstituição dos factos, quando a entender necessária.”
Decidiu o Mmo. Juiz do Tribunal a quo que, em face a toda a prova requerida, o Tribunal apreciará da sua conveniência ou não em sede de audiência final.
Certo é que, concluída a produção da prova e encerrada a audiência de discussão e julgamento, o Tribunal a quo não chegou a proferir qualquer decisão relativamente à realização ou dispensa de tal meio de prova.
Ora, o art. 411.º do C.P.C. determina que “incumbe ao juiz realizar ou ordenar, mesmo oficiosamente, todas as diligências necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio, quanto aos factos de que lhe é lícito conhecer”, de maneira que deveria o Tribunal ter-se pronunciado pelo deferimento/admissão ou indeferimento/rejeição de tal meio probatório.
Neste caso, encerrada a audiência de discussão e julgamento sem haver qualquer pronúncia quanto ao meio probatório, dispunham as partes de 10 dias para, querendo, arguir a nulidade processual secundária, nos termos previstos nos arts. 195.º e seguintes do C.P.C..
Não o tendo feito, tal nulidade ficou sanada.
B)
No entanto, não obstante a omissão mencionada em A) e convolação da nulidade por inexistência de arguição no prazo legal, apareceu na motivação da decisão sobre a matéria de facto que o Tribunal tinha utilizado a plataforma Google Mpas para observar a autoestrada onde ocorreu o sinistro e efetuar medições através das ferramentas aí disponíveis, não esclarecendo sequer as medidas efetuadas.
Entendeu o Tribunal da Relação de Lisboa que “o recurso a tais ferramentas, visando observar locais e efetuar medições é suscetível de ser qualificado como uma modalidade de prova por inspeção judicial, sujeita por isso à disciplina dos art.ºs 4[]90º e segs. do CPC, bem como às regras gerais do Direito probatório formal, previstas nos art.ºs 411º e segs. do CPC, máxime o i, consagrado no art.º 415º do mesmo código.”
Consequentemente, aplicando o respetivo regime legal previsto para as inspeções judicias, deveria o Tribunal
a) ter assegurado a intervenção das partes, em conformidade com o art. 491.º do C.P.C. [de acordo com o qual “As partes são notificadas do dia e hora da inspeção e podem, por si ou por seus advogados, prestar ao tribunal os esclarecimentos de que ele carecer, assim como chamar a sua atenção para os factos que reputem de interesse para a resolução da causa”];
b) ter lavrado auto, nos termos do disposto no art. 493.º do C.P.C. [de acordo com o qual “Da diligência é lavrado auto em que se registem todos os elementos úteis para o exame e decisão da causa, podendo o juiz determinar que se tirem fotografias para serem juntas ao processo”];
e, consequentemente,
c) ter assegurado o contraditório, nos termos do disposto no art. 415.º do C.P.C. [“Salvo disposição em contrário, não são admitidas nem produzidas provas sem audiência contraditória da parte a quem hajam de ser opostas”, e, “Quanto às provas constituendas, a parte é notificada, quando não for revel, para todos os atos de preparação e produção da prova, e é admitida a intervir nesses atos nos termos da lei; relativamente às provas pré-constituídas, deve facultar-se à parte a impugnação, tanto da respetiva admissão como da sua força probatória].
Assim, tendo atuado nos mencionados termos, decidiu p Tribunal da Relação de Lisboa que
“Ao recorrer ao meio de prova cibernavegação, sem observância do regime explicitado, o tribunal a quo incorreu numa nulidade processual porquanto foram omitidos atos e formalidades prescritos por lei, sendo que tais irregularidades podem influir na decisão da causa na precisa medida em que o facto em causa (e fundamentado em cibernavegação que não respeitou os direitos das partes) é um facto nuclear para a decisão de mérito (cf. Artigo 195º, nº1, do Código de Processo Civil).
Ora, quando o «tribunal profere uma decisão depois da omissão de um ato obrigatório; a decisão é nula por excesso de pronúncia (art.º 615º, nº1, al. d)), dado que conhece de matéria de que, nas circunstâncias em que o faz, não podia conhecer»”
Consequentemente, decidiu o referido aresto em anular a sentença proferida, determinando a reabertra da audiência ao Tribunal a quo reabrir para a realização de “cibernavegação”, com observância das normas aplicáveis, mormente o disposto nos arts. 415.º, 491.º e 493.º do C.P.C..
*
Sumário:
“
I. A utilização, pelo Juiz, na fase de instrução e julgamento da causa, das ferramentas informáticas Google Maps e Street View, disponíveis na internet, configura uma forma de prova por inspeção.
II. Na utilização de tais ferramentas, ainda que oficiosa, nos termos supra expostos deve o Tribunal observar os princípios processuais que presidem à produção de prova, desde logo o princípio da audiência contraditória, consagrado (art.º 415º do Código de Processo Civil).
III. A utilização das ferramentas acima aludidas, nos termos ali expostos, sem observância do disposto nos art.ºs 415º, 491ºe 493º do CPC configura uma nulidade processual, decorrente da omissão de atos e formalidades legalmente prescritos, visto que tais irregularidades podem influir na decisão da causa, sempre que o facto averiguado com recurso a tais ferramentas seja de qualificar como facto essencial (art.º 195º, nº 1, do Código de Processo Civil).
IV. Quando o tribunal profere uma decisão depois da omissão de um ato obrigatório, tendo essa omissão relevância para o exame ou decisão da causa verifica-se não só uma nulidade secundária (art.º 195º do CPC), mas também a nulidade da decisão, por excesso de pronúncia (art.º 615º, nº 1, al. d)), uma vez que, ao proferir tal decisão, o Tribunal que conhece de matéria de que, naquelas circunstâncias, não podia apreciar.
“
Comentários